segunda-feira, 27 de novembro de 2017

       
                     PERSONAGEM

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Pessoa criou muitos autores fictícios. A biografia acrescenta 60
desses heterônimos, além dos já conhecidos



O poema “Tabacaria”, primeiro contato de Cavalcanti com o universo do autor (ele o leu aos 16 anos), suscitou algumas das maiores descobertas a ser reveladas pelo livro inédito. A tal loja de cigarros e charutos, que sempre se creu que Pessoa via da janela de sua casa e que até hoje se pensava chamar-se A Morgadinha é, na verdade, a Havaneza dos Retroseiros (atualmente uma loja de peles). Pessoa não a via da janela do quarto como se acreditava, mas do escritório onde trabalhava com o amigo Luís Pedro Moitinho de Almeida. Para chegar a essa conclusão, Cavalcanti adotou o método empírico: visitou o lugar em que o poeta morava na época e provou que, mesmo se ele se encurvasse na janela, não veria tabacaria alguma. Outro erro: o poema é de 1928 e a Morgadinha foi fundada em 1958. Nesse período, ele não tinha máquina de escrever e varava as noites usando a do trabalho, no centro de Lisboa. Basta olhar da janela desse prédio: está lá a antiga Havaneza. As conclusões de Cavalcanti não param aí. O homem citado no poema, o “Esteves sem metafísica”, realmente existiu e foi quem, tempos depois, registrou o atestado de óbito do escritor. Cavalcanti vai mais longe e avança na questão dos heterônimos para provar que Pessoa não se multiplicava apenas em 67 autores fictícios, mas em 127. Faz até uma genealogia do perfil inventado por ele para o seu mais famoso “duplo”, Álvaro de Campos, o autor de “Tabacaria”: teria nascido em Tavira (terra do seu avô paterno), no dia 13 de outubro (aniversário de Friedrich Nietzsche) de 1890 (para ser um ano mais jovem que Alberto Caeiro, outro heterônimo). A tia-avó com quem o imaginário Álvaro de Campos vivia era na verdade duas, as tias Maria e Rita, essas sim reais – tias mesmo do próprio Pessoa. E por aí vai.
Também causará polêmica a tese do ­biógrafo, para quem o autor lisboeta era um “homem sem imaginação” – e isso no melhor sentido.
“Tudo o que Pessoa escreveu refere-se a ele e ao seu entorno, indo dos ­vizinhos às amizades literárias”, diz Cavalcanti. E foi atrás desses rastros “­reais” deixados aqui e ali em seus escritos que o biógrafo se embrenhou por Lisboa em cinco viagens ao ano para compor a obra. Serviram-lhe como guias, pesquisadores e consultores na checagem dos fatos um jornalista e um historiador. Cavalcanti entrevistou familiares e pessoas que moraram próximas aos 20 endereços diferentes onde o biografado teve residência – três o conheceram em vida, como Antonio, o filho do barbeiro que aparava o bigodinho do poeta. Outra fonte é o octogenário e aposentado Carlos Bate-Chapa. Ele explicou a Cavalcanti o significado dos pedidos cifrados que o escritor fazia nas mercearias quando começava a beber pela manhã: “Sete” era o vinho de sete tostões, servido em copo grande e escuro para disfarçar o alcoolismo; “286” era, por ordem, caixa de fósforos (dois tostões), cigarros (oito tostões) e um cálice de macieira brandy (seis tostões).




                                  

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“Tudo o que Pessoa escreveu refere-se a ele e ao seu entorno,
indo dos vizinhos às amizades literárias”

José Paulo Cavalcanti, escritor

Os encontros com familiares terminaram por aumentar o acervo de peças raras que Cavalcanti tem sobre o escritor e que serão mostradas na exposição “Fernando Pessoa – Plural como o Universo”. A abertura da mostra no Rio de Janeiro coincide com o lançamento da biografia. Dos primos do escritor, ele comprou o restante da biblioteca que não foi para instituições. De Maria das Graças Queirós, a sobrinha de Ofélia Queirós, a grande paixão do poeta, Cavalcanti adquiriu o retrato assinado por Almada Negreiros, o famoso “homenzinho de óculos e bigode”. Ela se dispôs a vender a obra ao ouvir de Cavalcanti o episódio de seu encontro com um sósia do artista. Ele, Cavalcanti, não hesitou: começou a seguir o homem que desapareceu correndo pelas ruas de Lisboa. Maria das Graças não teve dúvida: era o espectro de Pessoa e esse seria um sinal de boas-vindas ao brasileiro.
“Se o fantasma dele realmente existir, pode ter certeza de que está satisfeito de esses pertences estarem comigo”, diz Cavalcanti. Do lado de cá, os brasileiros fazem coro.


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